olhava desalentada e impotente (como se lhes quisesse dar vida) as caixas de cartão forradas por si mesma a tecido...
caixas a abarrotar de cartas manuscritas, em letras e datas diversas, e de fotografias amareladas (umas a preto e branco e outras a cores)...
florzinhas secas com significados vários, laços de seda desfeitos, a Cartilha Maternal (cheia dos primeiros garatujos), um brinquedo de lata de seu irmão, falecido em criança com a pneumónica, e que ela, como mais velha, ajudara a criar...
uma medalha de aluna do coro da igreja da aldeia nortenha onde nascera e de onde partira, ainda gaiata, com seus pais, para a capital... o relógio de bolso de seu pai, que há muito deixara de marcar o tempo... o frasco de perfume vazio de sua mãe, que mantinha um leve odor a "Madeiras do Oriente"...
uma caixinha de música muda, com uma bailarina em pontas que, outrora, rodara em infinitos "fouettés en tournant"... e as suas próprias sapatilhas de cetim rosa já coçado, dos tempos no conservatório...
o tule do véu de noiva, trazia recordações de um tempo a dois de confidências, confiança e infinito carinho...
releu e acarinhou tudo pela centésima vez, enquanto lágrimas penosas lhe assomavam aos olhos e escorriam pelos socalcos do rosto, finalmente libertas, aterrando docemente nas mãos alvas e já esquálidas...
mensalmente, como num ritual perene, alentava-a esta viagem pelo cordão umbilical que a ligava, mas que também a aprisionava, ao passado saudoso... a tudo e a todos os que já tinha partido, deixando-a só... apenas consigo mesma e as suas caixas de cartão forradas, já que a memória teimava em trai-la aqui e ali...
levantou-se a custo do chão... regressando ao sofá da sala, frente à televisão, que muitas vezes nem sequer ouvia, onde se sentava diariamente em infinitas tardes... à espera.
lúcia*


Sem comentários:
Enviar um comentário