terça-feira, 25 de março de 2014

CEMITÉRIOS EMOCIONAIS... OU A DOR DO APEGO SOLITÁRIO




olhava desalentada e impotente (como se lhes quisesse dar vida) as caixas de cartão forradas por si mesma a tecido...

caixas a abarrotar de cartas manuscritas, em letras e datas diversas, e de fotografias amareladas (umas a preto e branco e outras a cores)...

florzinhas secas com significados vários, laços de seda desfeitos, a Cartilha Maternal (cheia dos primeiros garatujos), um brinquedo de lata de seu irmão, falecido em criança com a pneumónica, e que ela, como mais velha, ajudara a criar...

uma medalha de aluna do coro da igreja da aldeia nortenha onde nascera e de onde partira, ainda gaiata, com seus pais, para a capital... o relógio de bolso de seu pai, que há muito deixara de marcar o tempo... o frasco de perfume vazio de sua mãe, que mantinha um leve odor a "Madeiras do Oriente"...

uma caixinha de música muda, com uma bailarina em pontas que, outrora, rodara em infinitos "fouettés en tournant"... e as suas próprias sapatilhas de cetim rosa já coçado, dos tempos no conservatório...

o tule do véu de noiva, trazia recordações de um tempo a dois de confidências, confiança e infinito carinho...




releu e acarinhou tudo pela centésima vez, enquanto lágrimas penosas lhe assomavam aos olhos e escorriam pelos socalcos do rosto, finalmente libertas, aterrando docemente nas mãos alvas e já esquálidas...

mensalmente, como num ritual perene, alentava-a esta viagem pelo cordão umbilical que a ligava, mas que também a aprisionava, ao passado saudoso... a tudo e a todos os que já tinha partido, deixando-a só... apenas consigo mesma e as suas caixas de cartão forradas, já que a memória teimava em trai-la aqui e ali...

levantou-se a custo do chão... regressando ao sofá da sala, frente à televisão, que muitas vezes nem sequer ouvia, onde se sentava diariamente em infinitas tardes... à espera.

lúcia*


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